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quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Doralice

     No mais, é isso: não tive batistério, mas dessa vida em gastura, esse batismo de dor da nossa vida de cafundós tem-me tratado por Doralice, que eu queria Alice e nada mais.
     Minhas mãos são desertas de afago, meus seios do arrepio ao toque doutros dedos, meus lábios da quentura do beijo. Minha cova rima tanto com meus dias quanto o brilho dos meus olhos para o ranço da vida. Hão de abrir a minha cova onde estão os meus, debaixo de ramos secos; porque, na verdade, a gente recebe na cova o que é da nossa natureza de ser.
      Minto que vivo sem paixão. Tenho duas: Teté, a cabra, e ele, o homem que escavo no sonho quando à noite eu preciso, mais que água fresca, de uns braços. Aí, com ele no sonho, olho nos seus olhos verdes, e capim e esperança e tudo nos cafundós se me faz verde em folha. Mas isso passa como luz de relâmpago.
      Esse meu batismo não é coisa e coisinha como o guardar de gole de água pra mais noitinha, depois da ceia do chibé. Não, a dor tomou outro pulso: a alma se resseca e se tende a rachar que nem o chão. Aí bate o querer morrer, como eu quis. Então eu saí por aí, vazia de sentido que nem o cacto a guardar água de choro.
      Quis o meu fim, abraçada  à  Teté. Mas que  a vi a se contorcer, a berrar contra a morte, num pó em que um dia se ouviu a cantiguinha dum riacho, tomei-a nos braços e tirei de mim o pote para o dar a ela. No outro dia, é a vida, a chuva caiu e aos seus pingos eu entreguei os lábios, as mãos, os seios para que eles os tocassem, embora friamente os arrepiassem.
       No mais, é isso: eu aqui.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O bem-te-vi

     Sobrou isso, isso que me azucrina, que me dói tanto, que me acaba de tanto suspiro, que me acaba de tanto gasto da escrivaninha pra cama; tanto que estou mais pra louça fina na quina da prateleira, prontinha para o desfecho no chão da cozinha, da qual sou desertor.
     As minhas noites, aliás essa noite, vai que seja a derradeira, é desnuda de lua, porquanto tudo, a partir de mim, é escuro varado; então, essa noite, que me entrega à flor dos ossos ao abraço do travesseiro, nela se pode cavar um mundo, o abismo mais profundo, que ainda assim não é mais amplo do que isso que me dói tanto, que é um isso de desatino, sei lá, um isso dessa coisa que não se declara e que sobrou pra mim.
     Olha, acabou não sendo a derradeira, essa noite. Talvez o seja o meu azucrinado, o que me dói tanto, os meus suspiros, posto que isso que sobrou deva me acabar de tanta lassidão na cadeira da varanda de incerto balanço, nesse dia pardo com cheiro de incertezas. Mas não: um bem-te-vi largou seu sustenido ali, acolá, nos galhos que se trançam num caminho da mata, e eu, sei lá, que vi, já estava no encalço do seu canto.
     O bem-te-vi vupt, sumiu, evaporou-se, e eu vi, a um arbusto florido, o remédio pra coisa toda que me sobrou: ela. Ela como a mais pura Maria, a flor que inventei com a sua partida. Ah, puxou o cabelo do sorriso, estendeu-me a mão, e eu, ah, não... Um trovão roubou-me o sonho, e eu saí à janela, a olhar o escuro, a ouvir os pingões da chuva, tof, tof, tof, sem ela.





segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Atrás da cortina

Dedico esta pequena história à médium-poetisa Luconi Márcia Maria pelo seu excelente e vigilante trabalho de nos transmitir as joias literárias do Plano Superior.


ANTES que a saudade me lançasse rédeas, eis-me aos olhos com minha vila encravada entre serras, o meu berço de ar ingênuo doado pelas flores serranas, que, tendo a lua e as estrelas por parteiras, davam à luz nas calçadas nuas.
Como a me deslizar no encanto, seguindo ao estalar de dedos da emoção, desci a serra pra me sentar num banco e noutro da praça da Igrejinha de Maria. Daí, curvei-me à igrejinha e sai pelas ruazinhas desertas, de beiras floridas.
      Ali, a casa de fulano: bati palmas, o cãozinho latiu, mas não havia ninguém na casa. Ali, sicrana: o papagaio dela engrolou, mas ninguém me ouviu. Ali e ali, ali a minha casa, do jeitinho que a deixei. Então, parei instante no alpendre, torci a maçaneta, a porta se abriu, sentei-me no sofá.
      Não estranhei a porta ao trinco. Minha irmã, que cuida da casa, depois que me mudei, tem a sua pra cuidar; além disso, na vila não havia ladrões. Então fiquei ali para surpreendê-la, mas algo saiu errado: pessoas saltaram ao muro e forçaram a porta dos fundos. Do sofá, vupt, eu dos pés à cabeça atrás da cortina.
      Ploc, ploc o coração, reconheci a voz dos jovens invasores: “Meu, o panaca tem relójo de ôro e pulsêra.”. “Vê aí, cara, eu vejo aqui.”. “Meu, é levar e torrá, falô?”. “Falô, mas arreda essa cortina.... Mais luz no pedaço, meu.”
      Abrir a cortina? Eu me gelei. Não de medo, mas de vergonha de vê-los a me roubar; logo eles a quem eu fui uma mão na roda. Então a cortina vrapt, e, estranho, eles não me viram, e levaram as minhas coisas. Atônito, fiquei no meio da sala até que uma forma luminosa de pessoa ali se fez e me deu a mão: “Chega disso aqui, tiozinho. Há um mundo e pessoas maravilhosas a te esperar. Venha!”
      Peguei a sua mão, vim-me embora com ela pra viver neste lugar feliz, que aí na Terra é sabido por “Além”. Vivo contente com meu trabalho e meus veros e antigos e novos amigos.



sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Historinhas para um lobo

No Dia das Crianças, esta historinha vai para Lara David Céo, a Luarzinha, que, aos três anos e meio de idade, já manifesta preocupação com a caça aos animais.

UMA vez, era a casinha de Vovó Isaura, lá longe, lonjura, beira de riozinho e de mata com o verde dos lápis de pintura. E era uma menina, a Lara, jeitinho de flor e sabida, que ia ficar com a Vovó na rede da varandinha, a Vovó a destampar seu pote de historinhas.
    Um dia, a Vovó lhe dizia coisas do Socozinho, um passarinho pescador, quando se ouviu o trot-ki-trot-ki-trot duns cavaleiros. Eles gritaram à Vovó que iam à mata matar um lobo ladrão, visto por ali. A Vovó levou as mãos ao rosto: “Ah, não!”
      Trot-ki-trot, e os homens sem o lobo matar. Era de a Vovó se alegrar, pois ela tinha no coração que o lobo dali não era ladrão. “Mentira”, ela dizia, “que ele pega carneirinhos, coisa e tal, e até pintinhos em quintal. Tudo mentira!”
      Numa manhã, por forcinha  das pernas, ela não  foi com Lara à cerca da casinha. E Lara foi mais; até o riozinho, beirinha da mata. Santa Maria! E o lobo? E os tiros do caçador impiedoso? Que nada! O lobo veio de banda do rio, e Lara e ele, ó, cara a cara.!
      Lara e o lobo, ela umas coisas lhe disse, e ele saiu. Mas logo parou pra que ela o seguisse. Daí, ouviu-se adiante o aflito duns carneirinhos, e o lobo virou um risquinho, atrás. Também se ouviu o trot-ki-trot dos cavalos, e Lara correu para o lobo, a gritar que fugisse para a mata.
      O lobo fugir? Hã, vai pensando! Ele fez, foi enfrentar uns lobos loucos que atacavam os carneirinhos. E que os afastou, um cavaleiro ainda quis nele atirar; mas Lara, corajosa, sem pensar saltou à frente do amiguinho e disse: “Você não viu, que ele protegeu os carneirinhos?”
      Bom, tudo serenado, diinhas depois, olha quem se deitou no quintal de Vovó Isaura, no meio de porquinhos e galinhas... O lobo! Uh, uh! Ficou lá tempão, até que Lara chegou, lhe deu pão, se sentou à sua frente e pegou a lhe contar as historinhas que a Vovó lhe contava, na rede da varandinha.




quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Arzinho de coisa boa

   A festa, o quintal de sabores e cheiros, pássaros, roseiras e pés de figo no terreiro, e o coração dele a se tingir ao manacá, por tê-la visto à varanda.
   Viu-a, e um desfio de saudade se lhe rompeu: os olhos da alma correram o lugarejo cortado por riozinho, onde nasceram. No entanto, o afã dos seus olhos por ela cortava o filme da saudade.
   O tempo de criança, ele e ela e os outros a brincar no riozinho, foi-se mirrando e, de pronto, mirradinho. É que num pouco que o olhar dela topou o dele, um fiozinho de ímã se teceu do seu coração até ela.
      Embora apagadinha, a lembrança, assim como a esperança, quando vê, pega vupt! Aí que’stá: uma passagem, a que ele queria morta, lhe saltou. Nela, ela se joga no riozinho e bate braços, à espera do mocinho. Que se quer cair no rio, fazer bonito, outro o faz e salva a mocinha. Disse, consigo: “Ô diacho!”
      Largadas de mão as minúcias de saudade, o jeito foi dar jeito na convulsão das pernas, enquanto se lhe troteava o coração. Este batia “Vá para ela, !”, mas as pernas tremiam. Então, respirou fundo e optou por quem manda é o coração.
      Olhos nos olhos, ela quase não teve força para destampar um “Oi”. Ele se fez forte e arrastou o “Como vai você, flor”. Aí, que ia descer às suas mãos o beijo, o velhinho dela, como a saltar no riozinho da emoção e a mocinha salvar, se pôs entre eles: “Velho, vá pra lá!” ― disse, empurrando-o.
     Ninguém se deu pela desavença  passional  dos velhinhos. Mas a vida, em ternura para com eles, vibrou pela vovozinha, que partia corações, a abanar com seu leque à furta-cor o que lhe saía do ego massageado: o arzinho de coisa boa.



sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Benquerenças

Obstinada, não aluia o pé, turrona, dadora de ombros. “É isprito ruim”, o rapaz João dizia. “Isprito ruim garra a gente, encrava-se na gente que nem bicho-do-pé. A Izinha, ele a encasquetou na estampa dum sujeito, e isso lhe seca o jeito de flor”.
― Izinha ― o rapaz João insistia ― você é um brinco de moça, Izinha...
Ela ― Não, eu quero é ele.
João ― Chegô circo. Trapézio, corda bamba, onça-pintada, inlefante, menino das rosas...
          Ela ― Não, eu quero é ele.
        A  vovó  entrou  com  um  olho aberto,  outro  arregalado:  “João,  cê tá amoitando o quê, por trás desse desinquieto pela Izinha?”
       João jurou que jamais. Que isso! Não queria, era ver uma perla de moça, que nem a Izinha, perder o jeito de pétala que o beija-flor abana. Jurou não ter um arzinho de outra cor na benquerença de amizade.
        João ― Não qué passear de charrete? Eu mando aveludar o banco...
        Ela ― Não, eu quero é ele.
       João  ― Mas Izinha, ele ora é da Dora, ora é da Flora, da Aninha, e diinhas atrás, da Magnólia.  Que diacho, Izinha!
        Ela ― Não, eu quero é ele.
       Passou-se o tempo das noivas, o tempo disso e de tudo, e o tempo de moça da Izinha. Um dia, fogueira de Santantõe, quem ela queria, já erado, grisalho, prendeu na sua trança uma flor de orvalho. Aí a mão dela, no zás do bote da víbora, prendeu a mão dele, e ali os abençoou o padre da vila.
       Dia claro, um birita à caça de poesia viu Seu João, sem destino algum, caído num banco dos fundos da jardineira, de rosto nas mãos, caído no choro por Izinha ter-se caído nos braços do outro.


quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Francisquinho ou Os coleguinhas de vida

       É sábado, manhã a meio.
     Viu, agorinha, um passarinho pousar na cruz, lá em cimão da matriz. Agora um menininho a gritar “olha aqui, vovó”, logo ali; aqui, do banco, ele evita o olhar dos passantes.
    Perna sobre outra, braço apoiado na perna, rosto jogado na mão. Olha pro chão com o olhar tardio que, noite passada, sentado na cama, deitou nos cabides vazios.
      Um  pombinho, arrulhando, lhe  passa  sobre o pé; mas o que lhe passa, sobretudo, é a ausência continuada de alguém que conceitua a sua vida. Essa ausência é o espectro da dor que arrasta, há anos.
       A noite passada foi mais um passo que não incitou outro passo. Foi, inteira, o momento carrasco em que até o vasinho de flor da mesinha do quarto lhe cansou. Passou-a sentado na cama, pausado, sem chama para abrir a janela à luz do dia.
      Mas está no dia, no meio da manhã que marcou para apagar o toco da vela da sua vida. Quer fazer da praça estação para a viagem inglória por um tiro no peito. E que o relógio da matriz está para bater, tira do bolso a arma minúscula, que some na mão.
     Às dez horas, dez batidas, e o tiro a sair no último blem. Então encosta o cano da arma no peito e fecha os olhos; porém, que o relógio começa a bater, é tocado pelo menininho que veio à praça com sua avó:
      ― Ou, vovô, como é seu nome? O meu é Francisquinho. Tenho carrinhos de corrida. Não tem ninguém aqui para brincar comigo. Brinca comigo, vovô?
     O olhar pedinte do menininho, o sem saber o porquê de ele lhe chamar ao brinquedo, a perícia de guardar a arma no bolso, para jogá-la logo mais num contêiner de lixo, o impulso de uma alegria no peito, o sinal da nova vida: “Claro, Francisquinho, eu brinco com você, sim. Vamos lá.”
     Agora eles brincam no meio da praça, ao meio das manhãs depois daquela manhã. E a vovó, que assiste a tudo, faz poesia de Francisquinho e seu coleguinha de vida. Aliás, a vovó assiste a tudo, à sombra de um manacá, com ares de que fez versos tão leves quanto às bolhas de sabão que uma garotinha sopra logo ali.




terça-feira, 5 de agosto de 2014

Dianainha

     Quisera eu ser in-antes de vomitar palavras que nunca comi e deixar Dianainha. Agora o eu, besta, sobe a serra de volta, puxando a pedra do ato de contrição, desconfiado de que os passarim me olham de lado, que Dianainha não me vai abrir a porta, que tem alguém co’ela. Diacho!
      Corrói-me não ter freado o trem esquisito que me deu, dia lá, que ela cantava numa festa aos zóios querentes de outros. Cego, cismei: “Vômbora docê, Dianainha! Pensa que é só ocê, no mundo? Ocê fica aqui a que quiser!”
      Enroscado pelo trem esquisito da cisma, embrulhei minha roupa com o silêncio e fui ao pote molhar a garganta. Quem sabe, aí, ela não garrava minha mão, me pedia pra ficar? Hã, ela se sentou na banqueta e pegou a alisar o cabelão bonito, co’a vista dormida no fogo do fogão. Aí, como não era home de faltar ao “vômbora docê”, saí de casa, saí da vida de Dianainha.
      Quisera eu ser in-antes de descer esse caminho, que agora pego de volta, e que serpenteia na serra. In-antes, eu dividia o travesseiro com Dianainha, e me grudava nela pra roubar da sua pele o cheiro do Leite de Rosas... Eu riscava na viola, ela cantava que nem rouxinol. Mas agora eu desconfio qu’ela não me vai abrir a porta, que tem alguém co’ela. Diacho!
      Enrosquei minha vida nos tormentos dos lugares, e subo a serra acertado de que Dianainha é só ela, no mundo, e qu’eu não fiquei ao que queria, pois o qu’eu queria virou um vão. A culpa me deixou em silêncio e me forçou à verdade; e a isso eu abracei, pois é a arma que o amor por ela usa contra mim, se esqueço de me vigiar.
      Então está; cheguei. O cãozinho nosso, deitado à porta, me olhou que nem os passarim, de lado, e voltou o queixo às patas. Não precisei bater na porta, pois meu coração o fez em tum-tum-tum. Aí ouvi a chinelinha dela, sapt, sapt, e ela abriu a porta, e ela voou em mim, e eu faltei ao sério de que home não chora, e eu fui roubar da pele dela o cheiro do Leite de Rosas.






terça-feira, 8 de julho de 2014

Depois da agonia do trem

Aos artistas plásticos, que nos doam, sem prever, histórias várias com suas telas.    



A colina, seios aqui, seios acolá, toda em verde. Verde tal a alma do homem, ele que nela apanha bem-me-queres, se disfarçando aos olhares de censura dos donos das flores, os pássaros.
      O homem é esboço do mesmo pincel que deu vida à colina com seus seios e sombras, e ao céu com sua névoa e nuvens que quase se esbarram na linha da colina. Tem na mão um ramalhete, e, na alma, é o que se sente, a feição cinzenta da mulher que ama; feição que se apega mais a cinza com a agonia do trem que e-vem entre os seios da colina: platplatplatplat, ôôôôôô, platplatplatplat, ôôôôôô!
     A alma do homem ao campo vê a mulher que ama, ela no quarto, olhar entregue ao vão da janela... À espera do trem? Oh, Deus! ― pôs-se em disparada, para não perdê-la para o trem.
     Embora tarde demais, deita o ramalhete na cama, ao lado da mala pronta da mulher. Não lhe sai o “por que, se eu te amo? “. Não, apenas baixa a cabeça, morde os lábios e, ao vê-la transpor a porta da casinha, se lhe deitam abaixo as lágrimas.
      A dor lateja ao que destrói até o seu píncaro, o passável, pois, aí, ou se vem o vago, que não dá sinal de fim, ou se vem o oposto, o prazer, que não dá sinal de fim. Então, entre ele e ela, agora, o trem na estaçãozinha: buf... buf... buf. Aí, não há um quê que lhe erga o rosto para vê-la à janela do vagão, e vive, cabisbaixo, o trem entrar em agonia e levá-la para sempre.
     Assim, a máquina geme e se alui e leva a sua dor ao píncaro, pra se agoniar em platplatplat, ôôôôôô, platplatplat, ôôôôôô, às curvas do mundo. Tem-se de beber a água salgada do canto da boca, desmorder os lábios, abrir os olhos à vida, dizer à vida: “ou, eu estou aqui! “
      Está aqui que ele  ergue o rosto e,  que passa o último vagão, a sua vida está ali, à sua frente: a mulher que ama está ali, na estaçãozinha, às lágrimas, mala pronta aos pés a dizer a ele, depois da agonia do trem: “ou, eu estou aqui! “
       A colina, seios  aqui,  seios acolá,  toda em  verde.  Verde  como as almas deles, ele e ela que nela apanham bem-me-queres, se disfarçando aos olhares de censura dos donos das flores, os pássaros.


(Pequena história extraída de pinturas em telas inspiradas no cotidiano e natureza)



sábado, 21 de junho de 2014

Téo e Luana

   
Por uma coisa à toa, um trocinho que Luana disse dos olhos pra fora, Téo se amuou no meio da sala, olhou pra um lado e se pôs na rua, se pôs na tarde, tardezinha.
    Olhei pra Luana, ela  a vê-lo sair, e quase fui-me saltar à frente do emburrado. Iria lhe passar um olhar duro, pra ele ver que estava a queimar a cama por causa de uma pulga. Mas não; deixei-o ir. Entretanto, o olhar de Luana me rogou a segui-lo; que ele estava a fundir a cuca.
      Furtivamente, eu segui ao meu intempérico amigo. E na sua primeira parada, oh Deus! Um boteco, um inferninho, um plaisir de soirée do Umbral: moços bêbados, moças sôfregas, vozes trôpegas, seios flácidos, flapt, flapt a bailar, a voltar ao decote. E que eu quis o Sinal da Cruz, ele saiu dali, voltou a trocar pernas. Ufa!
      Adiante, Téo encontrou um conhecido. Um carinha sujo, tristemente lembrando a um pobre morador de becos. Não dei bola ao que concordaram, e Téo seguiu, apressando o caminho. Daí quedou-se ao portão de uma mansão, onde se iria dar uma festinha.
      O porteiro, ao ver a boa feição de Téo ― feição mudada pelo bater pernas? ― abriu-lhe o portão. O porteiro estalou dedos e disse: “Qualquer coisa, você é meu amigo”. Então ele entrou, e eu, no ofício que me impôs o olhar tristinho de Luana, saltei à grade pela parte erma do jardim, e fui-me esconder deles atrás de um oleandro.
       Mas olha só, Téo  também  não tem  tarimba:  ir-se encontrar, de  cara, com as garotas, ainda mais a Lulu, a aniversariante? Hã! Um irmão dela bufou, e bufou outro irmão mais cabeçudo, e Téo pegou, pra minha alegria, o caminho do portão que o porteiro escancarou às pressas.
      Segui ao  meu intempérico amigo, na sua volta. Não me preocupei com os plaisir de soirée do Umbral do caminho, porque Téo voltava de instinto e alma para Luana. E assim que apontou a cara na porta, o menino da casa, que chegara da escola, gritou à mãe, a mãe que nem sabia que o cãozinho havia saído às ruas: “Mãeê, Téo voltou!”
       Voltou, parou no meio da sala, olhou pra um lado, saltou-se ao sofá, juntou-se à Luana. Daí, com eles em paz, Téo de carinha seca nas patas dela, eu vim-me embora. Vim, vibrando com o instinto de carinho e dependência que os conduz. Sei do árduo trabalho que terei para com o jeito de Téo, assim que ele deixar o plano físico. Até lá, é claro, ele há de se amuar pelas coisas à toa, um trocinho que Luana disser dos olhos pra fora.



quinta-feira, 12 de junho de 2014

Dorinha, me dá um beijo?

    Do cantar aflito de uns pneus, o baque, a vida do lugar vergada ao peso da tristeza, a alma de uma mãe em retalhos sem cor, ela sentada na rua com o filho inerte ao colo, às lágrimas fartas.
    O filho, o garoto Deco, luas e sóis agora entregue à cama. Dorinha, a metade dele da vida de brincadeiras, velava-o em preces e carinho. Às vezes, ela saía à rua, palco dos seus folguedos com Deco, e, plantada para o céu, via a pipa do amiguinho a subir, subir, a bailar, bailar na sua figuração. “Seu pensamento voa mais que a minha pipa, hein, Dorinha?”, ele a provocava, no imaginário.
        Com Deco à ponte entre dois mundos, a rua ficou sozinha. Coisas que eles viveram à sombra da vida, o cofrinho da mente de Dorinha desguardava. Coisas de somenos, mas que raros tiveram de mais. Coisas puras, sem o uso de agudeza para entende-las, e que nas suas pausas, Deco tirava do sem mais nem menos: “Dorinha, me dá um beijo?”
        Agora, ao toque da Ave-Maria, Dorinha saiu de vez à rua. Forte, a segurar o rosto, o choro, o ficar em vão, mas sendo fiapinho de nuvem pra segurar o mundo que havia tecido com Deco, o mundo que pendia para o nunca mais. Então a mãe de Deco chegou, feição carregada de trabalho, besta de carga da tristeza, e pegou-lhe os braços: “Dorinha... Dorinha, e o Deco?“
         Dorinha mordeu o lábio, não disse  nada. Guardou consigo  o Deco ter-se erguido da cama com outro corpo, um translúcido, um levíssimo, um luminoso, e beijar-lhe o rosto em lágrimas. Então, respondeu-lhe com um beijo ao “Dorinha, me dá um beijo?”, e o viu sair-se ao que lhe estava por vir, deixando para trás o corpo das brincadeiras de rua.
         Agora, Dorinha se mudou de casa, pra uma casa sem rua. Dorinha se mudou de muitas coisas, menos do olhar pro céu, do buscar Deco no céu, nos entre os voos dos pássaros, nos entre os raios do sol, nos entre os raios da lua.




sexta-feira, 30 de maio de 2014

O coração de Aninha

Esse texto vai para a criativa menina Laura Fernandes Lemes de Oliveira


Céuzinho em peso ouviu os gritos aflitos da mãe de Aninha. À rua, gritou e pulou e chorou ao céu que haviam roubado o coração da filhinha.
―Ué, zusmarijosé! ― benzeu-se uma vizinha.
       A professora se enfiou no meio do povo plantado à frente da casa, e, que nem o povo, de sobrancelha lá em cima, ouviu da mãe de Aninha que ela chorava às paredes do quarto.
       A menina, tadinha, soluçava, cabisbaixa, passarim sem par, dedinhos no peito caçando o coração, cabelinho de Santa Luzia no colo. Então a professora arregaçou as mangas: “Ah, eu quero ver a cara desse ladrão!”
       Os meninos Cico, Helim, Dorinha, mais o Velhinho 84, investigadores. O Velhinho 84, também aluno, também da roda, também do rolo, suspeitou do garoto poeta, do garoto da viola, do garoto de olhos verdes.
      Reunidos na casa de Aninha, a  professora  pega e quis saber com quem ela andara naqueles dias. Helim disse que ela correu e pulou e gemeu e sarou como todo mundo eles. Já o Velhinho 84, cismado com o garoto de olhos verdes, disse o que dizia sua mãe: “Ôio verde atrai coração, bamboleia o coitado e ó, zás, rouba ele”.
        Outro velhinho, o delegado,  manso no seu burrinho, sem  suspeito, foi de opinião que o ladrão não tinha o que fazer, o que lucrar, o que viver com o coração de Aninha; que iria recolocá-lo no peito dela e pronto. “Cês irão ver.”
      Sim, eles viram. Antes, ouviram os ais do Zequinha, o menino tido como “o bobo”, ele à porta, lado de fora, fora da paz. A professora saiu e se quedou e se pasmou com o coração da menina na palma da mão do Zequinha.
      No  rostinho do menino  “o bobo”,  o trilho das  lágrimas. E elas pintavam e molduravam de jeito a sua dor de ter roubado o coração. Então a professora lhe fez sinal que fosse pendurar a joia ao peito da sua amiga Aninha, e ele entrou para o quarto.
       O povo, olhos doidos pra ver alguém sem o coração, não o viu. Viu foi boiando seus olhos, assim que “o bobo”, à calçada, se ajoelhou e beijou e molhou os pés de Aninha, em perdão. Mais: que ia dobrar a esquina, “o bobo” voltou o rosto e abriu, vez primeira na vida, o arzinho de riso; o arzinho de riso que Aninha apanhou, arrumou, amoitou no seu coração de verdade.




quarta-feira, 21 de maio de 2014

Suspense na pracinha

O velho e erudito Observador de Ruas nunca fica sem conversa, ali, no banco da pracinha; nunca. Mas ninguém lhe perfuma o coração como as meninas Ianie, de nove anos, e Yasmim, de oito, que com ele bate um papo rápido, antes do sinal da escola no outro lado da rua. Elas lhe são as preferidas, embora tiram onda com ele com os casos que inventam.
      Elas tiram onda, e ele não se emenda; ou acha legal entrar na onda, talvez pelo carinho que delas se solta. Dia lá, elas chegaram “Oi vô” e já lhe foram contando, uma atravessando a outra, que no bairro tal, a mãe e a filha na cozinha; mas que a mãe saiu à sala, olha a porta escancarada. “Nossa, alguém entrou!”, o velho se estatelou. “Ou vô, peraí “― Ianie lhe bateu de leve, no braço. ― “A menina chegou da escola e não fechou a porta, tá?”
      Bem, aí... ― nessa hora, a dona Zica, a vozinha que vende quebra-queixo, chegou à pracinha. ― Bem, aí a mãe ouviu barulho no quarto e pé por pé deu com a porta aberta. “Santa Mãe! Alguém ligou à polícia?” ― disse o velho, de olhão, estatelado. “Ou vô, peraí pro senhor ver” ― Yasmim lhe bateu de leve, no braço.
       Sim, ligaram pra polícia e a polícia entrou na casa, enquanto lá fora ó, assim, de curioso. Daí, ouviu-se o plaft e o craft de coisas caindo dentro da casa. Um soldado berrou: “Isso, segura esse safado! Arrocha-lhe o pescoço! Ah, bicho sem-vergonha!“. Aí o velho cortou o caso: “Hen, coisa boa é o bicho no xadrez. Lugar de bandido, gente perigosa, é no xadrez.”
      “Que isso, vô,  tadinho!” ― Ianie disse, e o velho  a  contestou: “Tadinho de um bandido, princesinha?”. Aí entrou a Yasmim, num ar de sorriso: “Bandido? Que é isso, vovô! Era gato do mato. Vô, a cidade e as máquinas destroem o lugar deles, e eles saem a procurar comida, tadinhos. Adeusinho, vovô!” ― disseram juntas, já indo atender ao sinal da escola
      Elas se foram, rindo o seu ki, ki, ki, uaushus, shus, shus, e o velho, caído mais uma vez na onda delas, cruzou os braços ao peito, olhou para dona Zica, e a dona Zica do quebra-queixo, disse: “Quem pensava em gato do mato? Eitas meninas, hein?!”.




quinta-feira, 10 de abril de 2014

Um raminho pra Ana Luísa

Ao ver a menina Ana Luísa Arruda Kunz a brincar. É dela esse texto.


QUE O DIA deu as caras, o velhinho já estava há tempo na cadeira de balanço, na varandinha da frente. Aos seus pés, a cadelinha Élen não dormia. Era o velhinho, intermitente: “Você pregou olho, Élen? Por que dormes tanto, hein, menina? Está dormindo é nada, não é?”. Sim, Élen não dormia. E como se ela lhe cutucasse o coração, ele foi rompendo seus pesares da vida: ― Sabe Élen, eu tento disfarçar a dura verdade de todo dia: onde a tal felicidade? Élen, na vida é essa ingresia... Ser feliz é uma ideia antiga, arrevesada, da qual não se aprende é nada. Não aprendi; e enquanto aprendiz, longe está o motivo de eu ser feliz. Arre! Olha as plantas, o céu, os ramos em flor. Nas cores, Élen, há rancores. E você, menina, pregou olho? Está dormindo é nada, não é? Veja: está por acabar um ninho no pé de mangaba. Por que o não terminou o passarinho? O que o fez ir-se embora, sumir, voar às vagas? É a descontência, Élen. Lhe digo: eu e o passarinho, o que não deu por feito o ninho, arcamos co’essa penitência... Mas por que você tanto late, hein, Élen? Ah, agora eu sei: é Ana Luísa que veio brincar no quintal. Brincar é sempre o seu afinal. E eu fico a pensar: donde vem o motivo de Ana Luísa estar contente? Pois ela brinca com Élen, com tudo, abertamente... Sem passado, sem futuro; brinca simplesmente. Está lá co’as flores, insetos e até com as nuvens... Agora quer acabar o ninho deixado pelo passarinho. Ó velho em ferrugem! É o que digo de mim, ao vê-la acariciar e falar às folhas; daí correr para brincar com as bolhas da água da bica. Hã! Mas isso em mim fica: Ana Luísa não força o acontecer do que deseja... Então, na minha peleja eu começo a entender o sentido de viver: toco de mim esse amargor para me juntar a eles, ao quintal. Isto, agora, é o meu afinal. Portanto, ponho-me em cores sem rancores, apanho um raminho em flor e, leve como brisa, curvo-me a ela como seu aprendido e lhe ofereço: um raminho pra você, Ana Luísa.




sexta-feira, 4 de abril de 2014

Na janelinha do sorriso da Mim

Para minha amiguinha e netinha Yasmim Brito Céo, no tempo da sua janelinha.


O MAIS CERTO é que o velhinho de cabelos de algodão, que se sentou na beira de um riozinho, fosse o Anjo da Guarda da Mim. E ele trazia na mão a Rosita, uma florzinha pra lá de convencida.
    ― Rosita, tá vendo que beleza os peixinhos? Não sonhas ser um peixinho?
       E a pra lá de convencida Rosita:
       ― Não. Eu não  quero  ser  nada, porque  eu  sou a  mais  bonita  das florezinhas. Nem quero morar em lugar algum, porque eu moro em Cantinho do Céu.
      O velhinho disse à Rosita que elas, as flores, são trazidas à Terra pelos Anjos para enfeitá-la, e que algumas se acham as tais na candura e na beleza. Mas que não é assim: há coisas e lugares tão bonitos quanto às flores e o Cantinho do Céu.
       ― Fala o que  é, quero ver ― ela se deitou na mão do velhinho.
       ― Bom, há o sorriso e a janelinha do sorriso de uma menina: a Mim.
       ― Aposto que não ― Rosita teimou.
       ― Aposto que sim ― o velhinho bateu pé.
      ― Então  como  é o sorriso  da Mim? ―  ela  ergueu as pétalas  para ouvir o velhinho.
       ― É  tão  bonito.... Você,  eu  sei: tu  és   vermelhinha  na  beira  das  pétalas e grená por dentro. Mas o sorriso dela... Ah, o sorriso da Mim! É assim, assim, assim, sabe? É tão bonito que eu não sei... É assim, assim, assim, sabe?
       ― Tá, tá.  E  a  janelinha  do  sorriso  dela? ―  Rosita  murchou  mais  um pouco o convencimento.
       ― Olha, o Cantinho do Céu eu sei,  mas  a janelinha do sorriso dela... Ah, a janelinha do sorriso da Mim! É assim, assim, assim, sabe? É tão bonitinha que eu não sei... É assim, assim, assim, sabe?
       Fez-se silêncio. O riozinho e os passarinhos não cantaram, os peixinhos não nadaram, e Rosita parecia que dormia na mão do velhinho. Daí ele carinhou uma pétala, e ela não dormia era nada: ela imaginava o sorriso e a janelinha do sorriso da Mim. Então...
        ― Vovô, eu posso morar na janelinha do sorriso da Mim?
       O velhinho não respondeu. Ele abriu a mão e deixou que um passarinho levasse Rosita, já toda desconvencida, para a janelinha do sorriso da Mim. O velhinho, dizem, é o Anjo da Guarda da Mim.



quinta-feira, 27 de março de 2014

A menina da flor boa-noite

Para a princesinha Ianie David Céo, minha netinha que cuida das plantas e das flores.



O DIA se espreguiçando, um passarinho bicou na janela do quarto de Ianie: tac, tac, tac!
Ianie acordou, prendeu o cabelo, vapt com a escova nos dentes, com o short, com o tênis e saltou à janela para voar com o passarinho - ela pelos caminhos. Com pouco, chegaram ao Recanto da Flor Boa-noite, depois do riozinho, onde as crianças passavam horas a brincar com os animais.  Só que.... Só que Seu Rudão estava lá com o seu trator.
  Seu Rudão não respeitava a Natureza, queria deitar todas as árvores, e estava decidido a acabar com aquele mundinho de flor, e de recreio, para plantar pés de dinheiro no lugar ele gritava isso, do trator.
  Vovó Coruja, que havia enviado o passarinho atrás da menina Ianie, chamou o papagaio Zeca às escondidas e o mandou buscar a ajuda do velhinho delegado.
  Enquanto isso, Seu Rudão berrava à menina Ianie: 
  — Saia daí menina, senão eu passo em cima de vocês!
  E Ianie, corajosa: 
  — Não saio! Ninguém sai!
  Mas não foi preciso ninguém sair, porque o velhinho delegado chegou com seus ajudantes e deu voz de prisão a Seu Rudão.
  Preso, o homem mau adoeceu na cadeia. E a menina Ianie, sabendo que o chá da flor boa-noite o poderia curar, não hesitou em lhe levar, todos os dias, o remédio.
  Curado, e envergonhado pelo que queria fazer à Natureza e à vida dos animais, Seu Rudão queimou o seu trator e sumiu da Vila.

                                                                         FIM

  Fim, nada. Uma menininha de maria-chiquinha no cabelo, da terceira fila da classe, se levantou e perguntou:
  — E a menina Ianie?
  E o velhinho zelador da escola, vestido de Delegado da Vila, passou à frente da professora, que representava Vovó Coruja, respondeu:
  — A menina Ianie? Ela passou a ser conhecida por “a menina da flor boa-noite”. E toda vez em que ela saía de casa, as pessoas paravam para dizer: “Olhe lá, a menina da flor boa-noite! Ela é linda, não é? Sim, ela é uma flor!
  Aí a apresentação teve o seu fim com o “Ah, tá!” da menininha de maria-chiquinha.



(Essa historinha© foi apresentada em algumas escolas e simpósios de Educação Ambiental como um dos ativos à conscientização da preservação da Natureza ao público infantojuvenil).





quarta-feira, 19 de março de 2014

Mariinha Mineirinha


ZÁS! Salta à ruazinha Mariinha Mineirinha. Xap! Xap! A curva da corda do pula corda cutuca a rua de chão. Entra! Entra! ― gritam os batedores, e Mariinha entra no pula corda. Xap! ― A curva da corda levanta poeira, e os pezim de Mariinha, plaft, plaft, tamborilam no chão.
      Atrás de Mariinha e o pula corda, a igrejinha. Há quermesse: bandeirinhas, luz de rojão que ficou no ar, cãozinho prali, pracolá, povo vestindo a tear. Um menino, remûe na testa, corre... Ao pula corda? Nada. Vem é a gritar: “Mariiinhaaa! Saiu o bolim de mio frito!”.
    Mariinha nhac, nhac os bolinhos de milho da quermesse. A ponta da trança do cabelo, tibum no suco de ananás. A mãe se inclina: “Ó Mariinha, come devagá!”. O pai coça o cocoruto: “Deix’ela, coitadinha!”.
           O sol bate nu’a cumeeira colonial, e um  raio dele escapole pro céu e vira lua; luadia. Dois pombinhos na ponta da cumeeira quietam o facho do namoro - sob o sol e a lua - pra espiar Mariinha na rua. Ih! Ela põe língua a eles, e eles, no chispar do lápis estão na outra ponta da cumeeira; e crroo, crroo, crroo recomeçam o facho.
        Praft, praft, e Mariinha  volta do céu; do céu da Amarelinha. Amarelinha traçada a graveto na rua. Quiçá seja bem-te-vi, o passarinho que a vê pular. Ou um canarinhão, canarinho que o lápis borrou de não caber num ninho. Que singular passarinho! Dum lado é verde, corzinha dos sonhos dos meninos; do outro é terra, corzinha dos pezim de Mariinha.
           À frente de uma casa, uma mulher de riscos magros e saia torta. Diz o tino qu’ela saiu pra ver na rua os meninos; eles no Coelhinho Sai da Toca. Braços pra cima, cabelo em cinco traços, ela ouviu de Mariinha: “Coelhinho sai da toca, um, dois, três!”. Será que a mulher sonha ser do caçador a perdida coelhinha?
           “Se aquieta,  Mariinha!” ―  a mãe lhe aponta a cama. Mas, ah, não! Agora a rua estava vazia. Agora não tinha ar de graça nenhuma, e o homem fecha o caderno de desenho das crianças. Mas, saudoso, volta ao desenho em que Mariinha dorme e diz: “Vai, Mariinha Mineirinha, acorda. Vai!”




quinta-feira, 13 de março de 2014

Amor e dor nas águas de março

         O velhinho da pipoca viu-os chegar na Praça das Acácias e se sentarem no banco sob uma das acácias dormidas. O homem, grisalho, o saudou cortesmente, seguido pela mesma amabilidade da mulher.
       Trajavam tecidos  leves  em cinza claro;  um pouco diferente das roupas do dia a dia. O homem, camiseta larga e calça presa por cordão; a mulher, cabelo rente à nuca, se elegantizava de brincos, pulseiras, e vestia blusa à cintura e saia comprida.
        O velhinho, para fruir da melhor sombra, aproximou-se deles com seu carrinho. Sem que intentasse ouvi-los, ouviu a mulher iniciar a conversa, depois de um suspiro:
         ― Então é  esta  a praça  que tanto falas.  Há quanto  tempo não vens aqui?
           ― Há um ano. Estive aqui diinhas antes das águas de março.
           ― “São  as  águas  de  março  fechando  o verão”,   ela  cantou  o  verso de Jobim.
          ― Linda canção. Mas a mim, águas de março me lembra um caso, disse ele, jogando a perna sobre a outra. Um caso de amor e dor. Esta praça é parte deste caso, porque aqui um homem passava horas a falar com o amor da sua vida. Fala não a tête-à-tête, não sei se você entende.
           ― Sim, entendo como falar ao telefone.
         ― Também. Mais  comumente  pelo computador.  Aqui, coisa  de quatro anos atrás, ele a viu na tela. Viu-a como se visse uma flor; e ela o sentiu como o seu primeiro amor. Riam-se dos beijos trocados na tela, e ele traçou plano, se pondo à frente dele como um pássaro a cantar na sua janela. Mas um plano, e outro, por conta dos temperos da vida, falhavam; não rimavam com o que lhe palpitava o coração. Aqui, na praça, ele fechava os olhos para ela; ela somente sua, e o mundo somente deles. Um dia, se lhe abriu o estágio acima da esperança: a verdade de se ir para ela já era mais certa que o sol. Antes das águas de março, inundar-se-ia de alegria no colo dela. Porém, o sol da sua estrada falhou, e uma enorme fenda se abriu entre eles, posto que ela tomasse o rumo de outro coração. Daí, o seu grande amor, a se ver sozinho, sem ideia de destino, entregue como um barco perdido, caiu nas águas paradas e gélidas que levam a outra vida: ele foi encontrado, de rosto sobre os braços, nalguma destas mesinhas.
       O silêncio que se fez ao seu relato foi tão dormido quanto às acácias. A mulher, comovida, deitou o rosto no seu braço, e os olhos do velhinho das pipocas receberam um pouco das águas de março. Antes de se levantarem e sair, ela, ainda tomada de emoção por aquela história de amor e dor, quis saber:
       ― Conheceste esse pobre homem?
       ― Sim. Muito. Esse homem era eu.
       Eles se foram. Aos olhos do velhinho da pipoca, conhecido por “O que vê coisas”, esvaíram-se logo adiante, e para nunca mais ali na praça.





sexta-feira, 7 de março de 2014

Os dias internacionais de Karen

Uma troca de olhar, e o quê que dele escapou fez seu coração bater a pêndulo. Foi como se o procurasse desde outro mundo. Então o cuco da sua alma cantou, ela se fez em Sherlock e o viu entrar no número 234, de três andares. Esperou-o sair, e o seguiu até um bar, onde lhe esperava uma mulher. Sem pestanejar, bateu atrás: “Oi meu amor!” Ele, atônito: “Meu amor?!” “Ué! Não?!” ― Ela disse, e eles pegaram caminhos opostos na calçada.
       Novo dia, e, no caminho do ofício de Sherlock, o ofício do chaveiro. Mais tarde: “Pronto, senhora; aqui, as chaves.” Assim, ela o pegou dormindo e se deitou ao seu lado. Como se fosse em sonho, entregue à louca poesia que o corpo dela escrevia no seu, ele a amou. Mas que acordou, que deu-se conta... “Como entrou?”. “As portas ao trinco.” “Saia!”. “Sim.” Disse, manhosa, tentando prender o sutiã. “Me ajuda aqui?”.
      Novo dia, ela tirou da bolsa a agendinha dele. Ligou, ele desligou. Aí, num relance de ideia, falou com um amigo da lista; um médico, que a recebeu no consultório. Mais tarde, foi postar-se à frente do 234, a gritar que o amava. Gritou até um vizinho sair à janela: “Deixa essa maluca subir!”. Sim, ela subiu, se colou a ele, como que por encaixe, e que o mundo se acabasse ali.
       No entanto, ao tentar se sair dela, acabou por jogá-la ao chão. E ela, naquele silêncio pesado, ergueu-se, mostrando que ainda lhe brilhava no rosto o amor que por ele sentia. Daí, entrou no banheiro para recompor a pintura e ir-se embora e não mais voltar ali; mas do banheiro não saía.
      Passos pra lá e pra cá, ele resolveu forçar a porta, e a encontrou caída, com o punho ensanguentado. Desvairado, medo da situação, ligou para o amigo médico, que, daí a instante, diria: “Ela ainda está viva. Vou estancar o sangue aqui mesmo. Assim a Polícia... Vá pela cidade, amigo. Te ligo, vai.” E ele saiu para um trago em cada bar.
       Enquanto isso, no seu apê... “Ótimo, Karen. Seus dias de luta foram internacionais. Ele precisa de um amor como o seu... Lave essa tintura do pulso. Aplicarei a anestesia para a tatuagem à cor da pele, enfaixarei seu punho, e você ficará aqui por uns dias... Direi a ele que o verdadeiro amor surge, às vezes, de um momento difícil.”.
     Karen ainda se lembra do ramalhete que ele lhe trouxe, pela sua recuperação. Eles se casaram, eles se amam, e o médico e a sua mulher são seus melhores amigos, além de padrinhos do seu filho.





quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O novo mundo Louva-a-deus

Para Hélio Lemes de Oliveira Neto


A sala de escrever era a sombra da goiabeira. Pé no chão, ponta do lápis feito boba no caderno, o menino Helinho tinha os olhos descansados na Dora, que ciscava alto, rodeada de seus pintinhos.
       Roía-se  pra que o  anjo da  guarda o empurrasse no poço das ideias; aí ele daria braçadas no trabalho escrito que a Tia marcou. Mas aí que’stá: o lampejo que faz o lápis correr no caderno, estava frio. Culpa do canário que cantava no pé de amora que nem um maluquinho? Ou de um grilo, que se lamentava nalgum canto?
      “Epa! Peraí!”. Deu-lhe estalo. “Lamentar? Peraí... Lamento não é o avesso da esperança? Hein, Dora?”. E a Dora, ciscando alto, não lhe deu confiança. “De esperança é que o povo deste mundo vive, não sei quem falou”.
       Daí, que um louva-a-deus pousou a sua frente, ele remendou a prosa com a Dora: “Deste mundo. Não do mundo Louva-a-deus que a gente acaba de criar, não é Dora?”. E a Dora, ciscando alto, não lhe deu confiança.
        Aí o anjo da guarda desceu, e o lápis perdeu o breque pelo caderno:
       No novo  mundo Louva-a-deus  não há  fome, pois  a terra ― respeitada que nem uma mãe ― dá muitos frutos e raízes e folhas que as pessoas comem até. Todo mundo fala do mesmo jeito e não há guerra, pois todo mundo é da mesma família.
        O sol do verão  de Louva-a-deus  não  é tão  quente; por isso, a minha mãe não me lambuza de creme, nem usa o seu chapéu feião nos passeios. Também, o inverno não é tão frio; por isso, a minha mãe não fica me esfregando o lenço no nariz, achando que ele está escorrendo. Minha mãe tem cada uma!
       As escolas de Louva-a-deus são coloridas e limpas. Não há buraco no quadro-negro, escorpião no pátio, e a merenda não é só arroz-doce; eca! A diretora não tem cara de jiló, não dorme à mesa, e a Tia não faz greve porque anda sempre de sapato novo.
      Bom, há muito o que falar do novo mundo Louva-a-deus, mas a Tia passou que fosse de poucas linhas. Mas dá pra dizer que as matas dão muita comida aos animais, que eles vivem sem brigas, que as pessoas não os matam para comer... Não é, Dora?

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(Esta parte aqui, abaixo da linha, a Tia não pode ler. Senão ela vai dizer que sou mentiroso. Vai, porque eu disse que as pessoas não matam os animais para comê-los, perguntei à Dora “Não é, Dora?”, e ela parou de ciscar e ó, “crocorócrocoró, me respondeu que é, sim).



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Na velha casa abandonada

ELE passava o riozinho para desenhar a natureza, do lado em que ela morava; e ela, cabelo à maria-chiquinha, se punha a saltar às borboletas como em saltos de balé.
     Da troca de “Oi” pintava silêncio, quebrado pela conversa costumeira. Mas um dia ela quebrou incomumente esse silêncio: “Você já sentiu saudade? Eu vou para a cidade grande, estudar. Desenha a cidade grande?”. E ele: “Nunca senti saudade nem desenho cidade grande, pois não imagino cidade grande”.
        Nesse dia, entraram de mãos dadas  na velha casa abandonada de uma vereda. Amaram a casa. Limparam-na com galhos folhados, e ela posou de vestido estampado para os lápis dele, que se sangraram nas cores da boniteza dela.
          Viram-se outras vezes. Aliás, a última foi antes de muitos anos em que ele passou a viver o desejo de pintar o que sentia por ela: a saudade. Quando a saudade saiu do verde para o roxo, ele desembarcou na cidade grande.
          Dias e dias sem vê-la, sentou-se  num parque  para refletir; e que abriu os olhos, uma figura de mulher, a se mesclar aos raios do sol, estava logo à sua frente, à beira de um lago. Seria ela, por não existir coincidências no amor?
          Não. Não era. Mas  que  uma mão lhe pousou no ombro, aí sim, a intuição lhe  disse que  era ela; e era. Daí, frente a frente, e porque o amor não dissipa as feições, ele reconheceu a boniteza que dela fluía.
           Deu ele um  passo  para o  beijo;  ela  um  passo para  trás.  Disse  ela que há dias o  reconhecera  numa rua, que o seguira, e que tinha  algo a lhe dizer: que se ia casar... Que, não soube ele o quê, mas que o amava, o que ele não ouviu.
          Agora era ele a se ajustar  ao desencanto,  num vagão de segunda clas- se. Na sexta estação, desceria para a vida de refúgio nos campos e na velha casa abandonada. A propósito, esta seria a sua vida, não fosse ela gritar o seu nome, ao corredor do vagão, e correr para o beijo e à vida a dois.
          Eles  amam a velha casa  abandonada.  Sentem-se seus donos.   Limpa- ram-na ao figurino, e ela os abriga como cúmplice do primeiro amor que eles fizeram quando criança.