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sexta-feira, 26 de julho de 2013

Dinhocó


Céuzinho!
Céuzinho era assim: até duas dezenas de ruazinhas dormidas no sossego, com calçadas floridas; a maioria de margaridas e jasmins. As casas, casinholas, tinham quintais assim ó... Um mundo, de grandes.
Céuzinho ficava numa colina... Quer ver? Feche os olhos para dar vez aos olhos da alma, e verá que Céuzinho se brotou numa mão em súplica. Viu? Verá, também, a lua cheia a banhar Céuzinho, pois, dizia-se, lá sempre era tempo de lua cheia.
    Ainda com os olhos da alma, você passa pelas ruazinhas, sentindo culpa por pisá-las, e vê onde moram as gentes. Está vendo Vó Aninha no alpendre a lhe abrir um doce sorriso? Pois é, a casinhola de Vó Aninha é a segunda maior, por ser, também, escolinha.
    Um pouco, e verá a outra casinhola maior, a de Vô Nico, que é, também, hospital; Hospital do Céu. Aí você já passou por algumas vendinhas e biquinhas d’água; e, ao sair da pracinha dos Beija-Flores, verá o fim da ruazinha onde está fincada a morada do menino Dinho, o Dinhocó.
    Dinhocó!
    Dinhocó  era  assim: não se dava com as outras  crianças, ria  à toa, e nem picada de marimbondo lhe doía. Arredio, gostava da solidão. Ficava de cócoras, ao olhar passarinhos, e imitava o Saci, ao andar. Não lia e escrevia direito, e gostava de montão dos cãezinhos ― um deles, o Totó, o cãozinho de umas das gentes que caçoavam dele.
   Caçoar, as gentes caçoavam do Dinho, que, por gostar de andar na chuva, foi chamado, no começo, de Bocó. Daí nasceu Dinhocó. E foi justamente num dia de garoa que o prazo da vida de sofrimento do Dinhocó venceu.
   Isso, porque o Céu fez com  que um carro  se perdesse e passasse por Céuzinho. Esse carro, que sangrava as ruazinhas de Céuzinho, causando pavor, atropelou o cãozinho Totó e sumiu no mundo. As gentes, às janelas, exclamaram a sua dor: “Oh, Deus, tadinho do Totó!”.
   Eles viram Dinhocó correr e tomar o cãozinho nos braços. Mas ninguém viu um vulto de mulher, como que descido do Céu, misturado à garoa, dizer a Dinhocó que colasse a boca na boca de Totó e lhe enchesse o pulmãozinho de ar. “Sopra, sopra, sopra Dinhocó! E amanhã saberás escrever a sua historinha” ― o vulto completou para se sumir no Céu.
   Daí, que Vô Nico chegou para levar Totó ao Hospital, já não foi preciso tanta urgência: é que Totó respirava normalmente, de olhos cravados nos olhos do amiguinho Dinho.
    Bom, se você olhar, daqui a pouco, com os olhos da alma, verá que Dinho é assim: convive muito bem com os amiguinhos, é o melhor aluno de Vó Aninha, e sabe como ninguém inventar historinhas. E sempre, claro, sem que ninguém veja, porque ninguém iria entender, ele joga o olhar para o Céu e abre um risinho como quem abre um risinho para alguém muito de dentro do coração.


Esta historinha vai para Izabel Christina, pela sua benevolência para com os cãezinhos das ruas de Avaré.



sexta-feira, 19 de julho de 2013

Nina, Vô Zim e o ciúme da Vovó

 Isso a vovó contando: 
― Chamei o Zim, pra ver se ele tinha macetado a taturana do pé de figo, que o figo já pedia pra virar doce, e eu não chego ao pé de nada com taturana nele, mas é nunca; então chamei o Zim, e cadê o moleque do Zim?
  ― Uai,  Vô Zim se some, assim? ― o moço quis saber, ávido pela histori-nha.
  ― É assim: se os óclos não brincam de esconder com ele, ele está ao quintal, imitando passarinhos, colhendo florzinha, ou lendo livro na sua cadeira de vai e vem. Mas nesse dia estava ao quintal, miando e estalando os dedos pr’uma gata.
   ― Ai, ai, ai! Gata, gata, ou gata moça? ― o moço disse, rindo.
   ― Gata bicho, menino. Já viu gata gente? Hã!
    ― Tá. Mas, e aí, vovó?
   ― Aí  que meu  sossego ó...  Babau!   Não há de ver que a gata veio e deitou a carinha metade escura, metade amarela na mão dele? Ara!
    ― Vovó... Esse ara não quis dizer ciúme?
    ― Doido, menino? Eu, ciúme do Zim com uma gata?
    ― Tá. Mas, e aí, o que se deu?
   ― Deu que aonde ia o  Zim,  a gata ia. Ele a chamou de Nina. Arranjou escova, pente, e até espêio pra ela... Ara! Mas meu xampu não; amoitei bem amoitado.
    ― E  daí?
   Uai, com diinhas Zim batia no ombro, Nina saltava no seu ombro. Erguia o pé, ela se enganchava no seu pé. Quando eu vi, ele já lia pra ela. E mais: arrumou o quartinho dos fundos pra ela. Mas eu ó... Nem aí. Ara! 
     ― Vovó, vovó...
    ― Mais diinhas, e pegou a passear  com ela de jipe. Dizia: “Uma voltinha, Nina?”. E ela, derretida: “Miaaau!”. Ara! Eu vivia dizendo que já não tinha carta pra guiar, e que a polícia ia prender tudo. E isso era melhor que estar aqui, no hospital...
     ― E como foi o  acidente, vovó? 
   ― O jipe tombou... Hoje, cedinho. Eu estava na casa de nossa filha, quando meu netinho Pedrinho disse: “Mãeê! Vovóó! É a Nina saltando na porta! Olha aqui!”.
     (Pausa)
    ― Chora não, vovó. Chora não, que eu também choro ― disse o moço, ao vê-la enxugar o cantinho dos olhos.
    ― Tá. Então eu espiei, e era mesmo a Nina. Nem vi que perguntei: “Nina, cadê o Zim, Nina?”. Ela entendeu e correu rumo à estradinha de casa.
    Nós a seguimos, e lá estava o jipe, tombado no mato, e Zim caído acolá, desacordado.
     (Pausa)
    ― Chora não, vovó. Chora não, que eu... Ih, vovó! Vô Zim está vindo ao corredor, e andando! Ih! Nina é aquela gata enganchada no ombro dele, vovó?!
     ― Sim, é sim!  ― ela foi ao  encontro dele e  o abraçou com  Nina e tudo.
   Daí, perguntado sobre a gata, o médico disse: “Agora é que sei desta bonita menina, salvadora de vida... ― correu a mão na Nina. ― Ah! Bem me pareceu que algo se mexia aos pés de Vô  Zim, debaixo do lençol...”.
     Bom, diz a boa língua de Pedrinho que, hoje, semana depois da coisa toda, a vovó destrancou seus xampus a Nina. E mais: ela banhou Nina; mas olha só: Nina sequinha, penteada e cheirosa, vazou dela pra ir saltar ao ombro de Vô Zim. Ara!


quarta-feira, 10 de julho de 2013

Do diário de um passarinho

 Esta historinha é da princesinha Ianie David Céo.



O meu nome é Cã-te-vi. Minha mamãe foi canarinha; meu papai, bem-te-vi.
   Aprendi a voar e a escrever com Vovó Coruja. É que meus pais morreram envenenados numa roça quando eu era petitito. Eu sei também falar, cantar, sonhar e sentir saudade como qualquer passarinho ou criança.
    Escrevo meu diário em passaredo, a nossa língua que as crianças entendem, num pé de Amor-da-folha-grande, onde eu moro. É que a folha desse pé de Amor não cai, e nada, nem o tempo, desmancha o meu escrito.
    Bom, já que toquei em saudade, falarei de uma que bate com meu coração.
   Tudo começou quando Vovó Coruja nos avisou da festa de São João das Crianças no ranchinho de Vó Isaura, aqui perto. Então eu ó, pac-pac-pac, bati o bico de achar bom, e fui-me lavar na Cachoeira das Borboletas.
    Passei a cortina de água pra lá e pra cá, e isso me deixou mais limpinho que os raios do Sol, e voei para o ranchinho de Vó Isaura. Lá eu fiquei num pé de amora, à espera da Dança das Quadrilhas. Mas eu nem quis saber da Dança... É que Vó Isaura anunciou: “Crianças, a Princesinha Ianie está chegando!”.
    Oba! Princesinha?!, eu disse, me arrumando no galho da amora. Cocei o bico e a cabeça porque nunca tinha visto uma princesa. Ouvia Vovó Coruja contar historinhas delas, mas ver uma princesa de pertinho... Nem sei se dou conta de ver, pensei comigo.
   Fiquei ansioso, trocando os pés no galho, me coçando debaixo das asas e repetindo: será que ela é linda, como nas historinhas da Vovó? Daí eu comecei a sonhar: eu no ombro dela, e ela dançando a Quadrilha. Nó! Que lindo!
    Acontece que, de tanto sonhar, me veio uma zonzeira e eu ó... Praft, caí do galho. Caído, e com as vistas embaçadas, ouvi um menino gritar: “Um passarinho caiu ali!”. Daí, com eles em cima de mim, ouvi outro: “Vamos tirar as peninhas dele?”.
   Em  seguida, acho que  fui  ao Céu dos Passarinhos ao ouvir a linda  Princesinha dizer: “Epa! Esse passarinho é meu! Ele é meu e pronto!”. Então, ela me beijou e pediu a São Chiquim de Assis por mim. E que São Chiquim me ajudou, eu quis voar, ou fingi querer; mas ela me segurou e me pôs no seu ombro para dançar a Quadrilha. Ô que bom!
    Ai, ai! Acontece que cair do galho, estar colado no rosto dela e me segurar no seu ombro, tudo isso foi sonho. Vi que sonhava porque Vovó Coruja chegou e disse: “Ei Cã-te-vi, tá sonhando, passarinho? Vamos embora pra casa que a festa já acabou...”.
    Vim-me embora, mas não dormi. Fiquei pensando na Princesinha... Pensando ser seu passarinho, como ela disse no meu sonho. E até que chegue o próximo São João das Crianças, no ranchinho de Vó Isaura, vou vivendo como diz o seresteiro Rouxinol: “A gente é feito de saudade e esperança”.