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terça-feira, 21 de maio de 2013

Deixa de coisas e volta pra casa

DEIXA DE COISAS e volta pra casa é uma historinha da menininha Mim, a Yasmim. Uma historinha que ninguém leu, e que está escondida. Mas aí que está: por que Mim escondeu esta historinha? 
   Simples, disse Tinim, amiguinho dela. Ela se imaginou uma menina invisível que grava o que se passa numa casa de pais, meninos, uma cadelinha e uma gata. E, com o negócio do invisível, muita gente grande iria rir dela. É isso.
     E a historinha da Mim é assim: a mãe jogou as mãos no rosto e falou ao filho: Deco, eu lhe disse pra dar comida à Lana sem soltar a corrente dela... E agora? Onde está nossa cadelinha Lana? Que um Anjo ajude seu pai a encontrá-la
     Dorinha, no sofá com sua boneca que fala, falou: Deco bateu nela, mãe. Por isso, ela fugiu. Deco se defendeu: Mentira dessa menina, mãe! Bati nela, não! Torci a orelha dela porque ela não quis comer, mas pular em mim. Dorinha voltou a entrega-lo: Foi verdade sim, mãe. Ele bateu nela com o rodo. Eu vi
     A mãe puxou os dois a si, e tentou controlar o astral: Vamos fazer uma coisa, crianças. Vamos orar a São Chiquim de Assim pra que seu pai a encontre... Dorinha, por favor, puxe a oração
     Depois de Dorinha, Deco fez a sua oração; e depois do Deco, a vez de a mãe fazer a sua oração. Daí, já de noitinha, chegou o pai, desanimado: Lana sumiu. Procurei-a por quase toda a cidade
     Não bastasse Lana, Dorinha deu falta da gata Nina. Mãe, e a Nina?. O pai correu à casinha dela, e nada de Nina. Ninaáá! Miauuu! Ninaáá! Pronto, os dois sumiram
    Foi que Nina não aguentou a ausência de Lana, como eles já não suportavam a ausência dos dois. A mãe, então, ajuntou-os a si e voltou à oração. Agora, a vez de o pai puxar a oração a São Chiquim de Assis. 
      Eles em prece, o nheeec do portão da rua se fez ouvir. Mim, à janela, virou a filmadora para o portão e captou algo inolvidável: a gata Nina, com a corrente de Lana na boca, trouxe-a para casa. 
      Mim era invisível e, por isso, não pode lhes dizer Gente, Nina trouxe Lana pra casa... Olha só!. Ela não disse, mas a mãe ouviu barulho na escada que dá à porta. Psiu!, pôs o dedo na boca, Ai, meu Deus, será ladrão?, ela cochichou, e perguntou ao marido, ainda ao cochicho: Você não trancou o portão?. 
       O marido disse Não, e foi pegar o rolo de abrir massas. Com ele à mão, e a outra mão na trinca da porta, ouviu-se Nina chamar, como em pedido de mimo, embaixo da porta: Miaaau!
      Dorinha deu um pulo de jogar a boneca na invisível Mim. A mãe abraçou Deco, que urrou de choro na barriga dela. Daí, eles se calaram e abriram ala pra Nina atravessar a sala, toda-toda, puxando Lana pra sua casinha. 
       Foi festa só, e Deco quis dormir, pelo menos, com a cabeça na casinha de Lana. Hã, hã!, negou a mãe. Nisso, Mim desligou a filmadora e ficou a imaginar que Nina, ao encontrar Lana, havia-lhe dito: Lana, minha amiga, perdoa o Deco. Ele errou com você, o coração dele sabe disso, mas ele te ama. Todo mundo te ama. Vai, deixa de coisas, volta pra casa...


À escritora Nena Medeiros, que trabalha, incansavelmente, em prol dos animais abandonados.


quinta-feira, 16 de maio de 2013

Rua Descalça, número crianças




PENSA AÍ: você mãe, ou pai, de uma menina assim... Assim um anjo de meiga, sabida e levada. Tem o quê... Nove anos. Pensou? Então, você, mãe, está na cozinha com inédita receita de bolo, e seu anjo conta uma historinha à vovó, na sala.
          A vovó é uma santinha, de tão branda e simples na ponta do sofá; uma flor de carinho se abrindo à historinha que Gabriela toca e empaca:
          Sabe meu outro Vô, hein, Vó? Ele que contou a historinha de um vozinho, o Vô Tico. Contou que Vô Tico morava no asilo e, daí... Como é mesmo, mãe? – você, envolvida com o bolo, responde, e ela toca a historinha:
          Ah, é. Vô Tico, já bem vozinho, se vestiu, pôs gravata, pegou a bengala e fugiu do asilo, dia escurinho. Daí ele chegou numa rua... Sei o nome da rua: Rua Descalça. Não é, mãe? – você diz que sim, e ela continua.
          Vó, a senhora entende? Ah, bom... Daí é assim: Vô Tico se senta à porta de uma casa, que a mulher da casa lhe deu cadeira, leite com café e bolo. Sentado, e a olhar a Rua Descalça, ele dorme. Não é, mãe? – você diz que sim, e ela toca a historinha:
          Dormindo, Vô Tico vê a rua cheinha de crianças. Deco joga com o Cico o jogo do Papão... Sabe esse jogo, hein, Vó? – a vovó diz que não com a cabeça e Gabriela ri, com a mão na boca, de a vovó e nem ela saber que jogo é este. Daí continua:
          Na calçada, a Cida joga a Amarelinha com a Cássia. E, Vô Tico, dormindo, fala: Que gracinha é o cabelo da Cassinha a voar, quando ela salta de um número a outro... Que gracinha! – agora Gabriela olha o teto e recorre à mãe: “Maeê! E agora?” – você responde, e ela toca a historinha:
          Ah, tá. Aí, Vó, sabe o Pula-Corda? Quem bate a corda pra Marina pular é a Rita e a Dorinha. E Vô Tico fala, dormindo, que a mãe da Marina está na janela, do lado dum vasinho de flor, e de queixo caído com a beleza da Marina.
          Ah, e tem o Tinim... Quase que esqueço. O Tinim é o rei do Pião. Gente grande, que não sabe brincar, faz roda pra ver Tinim jogar o Pião. O Pião faz assim ó, zummmp! Faz assim, cai no chão, roda, roda, Tinim o pega na palma da mão, e aí ele morre...
          Agora, lá vem o Tonico... O Tonico dá linha à pipa, e a pipa sobe, sobe lá em cimão, no céu. Aí, as rolinhas, com ciúme de a pipa estar bonita no céu, voam zupt pra bicar a pipa. Só que o Tonico, esperto, puxa a pipa pr’aqui, pra cá, e as rolinhas caçam outro rumo... Coisa boa!
          Daí... Daí... Mãeê! ― você ajuda, e ela finaliza a historinha. ― Ah, tá. Daí a gente do asilo chega e leva Vô Tico. Nó! Vô Tico põe os pés no asilo, e a vovó Ciinha, que mora lá, quer-lhe dar bengalada nas pernas porque ele fugiu. ― agora, Gabriela e vovó riem juntas. ― É de mentirinha, Vó. Vovó Ciinha acha é bom, Vô Tico lhe dizer: E quando eu, Tonico, encostei a minha pipa no céu, sentei-me na Rua Descalça pra ver você, Cassinha, pular a Amarelinha... Que gracinha, o seu cabelo a voar... Que gracinha!.
          Bom, a historinha da Gabriela acabou; mas a sua, mãe, hã-hã: é que você sai à sala com a mão na testa e diz chorosa à vovó: Ai de mim, quando a Gabriela pega a contar historinha! Não há-de ver que me esqueci do Pó Royal, e o bolo já está no forno? Ah, não!



Aos vozinhos que poetizam momentos nos asilos com seus sonhos de criança. A bênção, vozinhos.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Manu e seus amigos da barra-pesada

Esta historinha é para Manuela Borges Elias, a menininha com "olhinhos de passarinho em galho estranho".




CAÍRAM TRÊS PINGENTES da estrela da manhã na casa da Manu: dois cãezinhos espoletas, Ted e Pitoco, que formam time com a gatinha Nina. Ela os ganhou! Na verdade, disse a mãe da Manu, o time é um quarteto, pois Manu tabela com eles que é uma beleza.
    Quem vê não duvida que olhinhos semelhantes se atraiam. Todos, incluindo a Manu, têm os olhinhos, sem tirar nem pôr, de um passarinho em galho estranho. E, com olhinhos assim, irrequietos, São Miguel Arcanjo cruza os bruços e agarra a rir.
      A amizade neles foi que nem fogo em pólvora: vúu! Aí, outro dia, a mãe chegou das compras e se embasbacou, ao ver a sala num carnaval de recheio de almofadas. E mais: à porta, ela ganhou na boca um fiapo dos recheios que voaram rumo ao dia.
      A mãe gritou pra nunca mais gritar: “Manu! Nina! Pitoco! Ted!”. E, se não viu quando pegou a chinela, viu-se frágil diante deles: eles encolhidos no sofá, e nos olhinhos o mais puro que exala de uma flor. Hã! Sem força, ela disse: “Desculpa crianças”.
    Cada um tem a sua jogada: Pitoco é roer pernas e canto de mesas e cadeiras; Ted é enfiar dentes e garras em almofadas, travesseiros... Nina é subir na pia, nos armários, e procurar aí o que não perdeu; e Manu é curtir seus amigos da barra-pesada.
      A mãe gritou pra nunca mais gritar: “Manu! Nina! Pitoco! Ted!” E, se não se viu cair de costas na cama, a cama num carnaval de recheios de travesseiro, não viu que deixou a chinela cair, coisa que chovia água da pia na cozinha.
     Como, assim? Água a cair da pia? Uai! Água cai é da torneira na pia... Nesse dia, não: a mãe esqueceu a torneira aberta porque correu atrás de um reeec vindo do quarto; e reeec é o som de uma cortina sendo rasgada. Enquanto isso, a gatinha Nina saltou-se na pia e derrubou algo que caiu feito uma luva no ralo, entupindo-o.
       Outro dia, a mãe chegou das compras, e cadê fuzarca? Tudo quieto tal o porquinho de moedas da Manu. Mas, nem tudo certo tal o torto do anzol: é que Manu estava nos fundos, vendo seus amigos a imobilizar o guri Pedrinho, que tinha acabado de saltar ao muro.
      Mas, calma. Pedrinho é o amiguinho de Manu, que, cansado de chamar à porta da sala, resolveu saltar ao muro para brincar com eles. Aí, bom, aí São Miguel Arcanjo não pega a rir, mas a gargalhar ao céu inteiro. Gargalhar de tudo e da mãe, que ligou pra mãe, mas falou com o pai.
     Subentende-se o que ela disse, pela resposta do pai: “Aguenta, sim, minha filha. Você é mãe. E mãe aguenta as cargas de uma guerra nas costas, sem susto. Mãe é mãe, minha filha, e ponto e acabado”.
     Ponto e acabado que ela foi lá, soltou Pedrinho das garras dos pingentes e deixou o time jogar. Mas, aí, diinhas depois, São Miguel Arcanjo, que tinha outras crianças com seus pingentes pra olhar, arrumou jogo pra eles no parque... 
      Agora, a mãe só fala em ufas: “Ufa! Bom é que não tem mais jogo aqui em casa, porque eles só querem o parque e chegam muito cansados, e eu aproveitei e troquei tudo: cadeiras, gols, o piso, camisas... Tudo. Troquei tudo. Ufa!”.



quinta-feira, 2 de maio de 2013

Debaixo do colchão do Tinim



TINIM tem doze anos... “Tenho doze anos”, ele escreveu e guardou debaixo do colchão, “porque o tempo tira a gente de um lugar que a gente não quer sair. Por que ele me tirou dos dez, se Aninha me disse que eu iria ficar velho pra ela se saísse dos dez anos?”.
            ― Está vendo, comadre, em que pé a coisa está? Olha só o quanto de coisa, debaixo do colchão... ― disse a mãe do Tinim a sua irmã, também madrinha e professora dele. ― Está vendo a evolução do seu aluno e afilhado e sobrinho?
            Olha esse aqui... ― a madrinha pediu atenção à irmã:
            “O Padre disse que Deus está em todo lugar. Se é verdade, Deus é minha mãe, porque, além de ser que nem formiga a passear pelas minhas coisas, achando que minhas coisas é mel ou doce, eu a sinto até no campinho, na hora de defender pênalti”.
            ― Eu, futricando? Eu, formiga? Eu, Deus? Ah, Tinim! Bom, deixa... Vamos ver o que há neste envelope.
            “A professora disse que a mulher já nasce mãe. Não nasce, porque no coração de mãe há um poço de coisa em cima de coisa: é beijo na testa, em cima do agora não; é abraço quentinho, em cima do pode não; é historinha na cama, em cima de orelha torcida; é picolé de goiaba, em cima de jiló e quiabo... E, no fundo, bem no fundo, é o perdão, em cima dos meus pecados...”.
            ― Eu disse que a mulher já nasce mãe? Eu?!
            ― Disse ou não disse professora? Bom, olha este aqui:
            “Mãe, para mim, tem papo com Anjos. E algum Anjo é dedo-duro. É, mas é. Então, por que ela me puxou pelo braço ao quarto e quis saber se eu tinha feito cocô, hoje? Antes que eu respondesse, ela me lascou a pergunta sobre quem havia feito cocô num pé de tênis do Deco, meu colega, na piscina do clube. Antes que eu dissesse a verdade, ela me lascou um olhar daqueles, e eu já fiquei de castigo. Uai, se não foi um Anjo dedo-duro, quem foi então?!”.
            ― Ãã! ― disse a mãe à irmã. ― Eu me lembro, sim... Eu sabia... Alguma coisa me dizia que havia sido ele... Ah, Tinim!
            Mãe e madrinha, as duas, prontamente, ergueram o colchão do Tinim, em busca de mais escritos. Havia, sim, e muitos, presos por clipes; mas a mãe optou pelo envelope do lado da cabeceira. Nele, havia uma pintura a óleo do seu rosto, em moldura fina, protegida por pedaços de papelão. Sobre a telinha, meia folha com palavras do marido, há meses no plano espiritual, assinada por ele e Tinim:

“Os avós, e os pais, são luzes e nos valem muito. Os parentes, os amigos e os animais de nossa casa são luzes e nos valem muito. Mas você, rainha, minha mãe e do Tinim, você é luz de tal grandeza, que vale por outras luzes e tudo mais.
De quem te ama muito, nossa mãe!“

          Emoção, lágrimas, mãe, madrinha, e as coisas do Tinim debaixo do seu colchão, quietas. Emoção, lágrimas, madrinha e mãe abraçada ao filho no meio da sala. “Tinim”, a madrinha mandou dizer, “Tinim entregou à mãe, no radiante Dia das Mães, como combinado com o pai, a pintura do seu rosto. E eles ficaram abraçados, no meio da sala, até o marido e pai voltar para o seu plano de vida”.