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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O novo mundo Louva-a-deus

Para Hélio Lemes de Oliveira Neto


A sala de escrever era a sombra da goiabeira. Pé no chão, ponta do lápis feito boba no caderno, o menino Helinho tinha os olhos descansados na Dora, que ciscava alto, rodeada de seus pintinhos.
       Roía-se  pra que o  anjo da  guarda o empurrasse no poço das ideias; aí ele daria braçadas no trabalho escrito que a Tia marcou. Mas aí que’stá: o lampejo que faz o lápis correr no caderno, estava frio. Culpa do canário que cantava no pé de amora que nem um maluquinho? Ou de um grilo, que se lamentava nalgum canto?
      “Epa! Peraí!”. Deu-lhe estalo. “Lamentar? Peraí... Lamento não é o avesso da esperança? Hein, Dora?”. E a Dora, ciscando alto, não lhe deu confiança. “De esperança é que o povo deste mundo vive, não sei quem falou”.
       Daí, que um louva-a-deus pousou a sua frente, ele remendou a prosa com a Dora: “Deste mundo. Não do mundo Louva-a-deus que a gente acaba de criar, não é Dora?”. E a Dora, ciscando alto, não lhe deu confiança.
        Aí o anjo da guarda desceu, e o lápis perdeu o breque pelo caderno:
       No novo  mundo Louva-a-deus  não há  fome, pois  a terra ― respeitada que nem uma mãe ― dá muitos frutos e raízes e folhas que as pessoas comem até. Todo mundo fala do mesmo jeito e não há guerra, pois todo mundo é da mesma família.
        O sol do verão  de Louva-a-deus  não  é tão  quente; por isso, a minha mãe não me lambuza de creme, nem usa o seu chapéu feião nos passeios. Também, o inverno não é tão frio; por isso, a minha mãe não fica me esfregando o lenço no nariz, achando que ele está escorrendo. Minha mãe tem cada uma!
       As escolas de Louva-a-deus são coloridas e limpas. Não há buraco no quadro-negro, escorpião no pátio, e a merenda não é só arroz-doce; eca! A diretora não tem cara de jiló, não dorme à mesa, e a Tia não faz greve porque anda sempre de sapato novo.
      Bom, há muito o que falar do novo mundo Louva-a-deus, mas a Tia passou que fosse de poucas linhas. Mas dá pra dizer que as matas dão muita comida aos animais, que eles vivem sem brigas, que as pessoas não os matam para comer... Não é, Dora?

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(Esta parte aqui, abaixo da linha, a Tia não pode ler. Senão ela vai dizer que sou mentiroso. Vai, porque eu disse que as pessoas não matam os animais para comê-los, perguntei à Dora “Não é, Dora?”, e ela parou de ciscar e ó, “crocorócrocoró, me respondeu que é, sim).



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Na velha casa abandonada

ELE passava o riozinho para desenhar a natureza, do lado em que ela morava; e ela, cabelo à maria-chiquinha, se punha a saltar às borboletas como em saltos de balé.
     Da troca de “Oi” pintava silêncio, quebrado pela conversa costumeira. Mas um dia ela quebrou incomumente esse silêncio: “Você já sentiu saudade? Eu vou para a cidade grande, estudar. Desenha a cidade grande?”. E ele: “Nunca senti saudade nem desenho cidade grande, pois não imagino cidade grande”.
        Nesse dia, entraram de mãos dadas  na velha casa abandonada de uma vereda. Amaram a casa. Limparam-na com galhos folhados, e ela posou de vestido estampado para os lápis dele, que se sangraram nas cores da boniteza dela.
          Viram-se outras vezes. Aliás, a última foi antes de muitos anos em que ele passou a viver o desejo de pintar o que sentia por ela: a saudade. Quando a saudade saiu do verde para o roxo, ele desembarcou na cidade grande.
          Dias e dias sem vê-la, sentou-se  num parque  para refletir; e que abriu os olhos, uma figura de mulher, a se mesclar aos raios do sol, estava logo à sua frente, à beira de um lago. Seria ela, por não existir coincidências no amor?
          Não. Não era. Mas  que  uma mão lhe pousou no ombro, aí sim, a intuição lhe  disse que  era ela; e era. Daí, frente a frente, e porque o amor não dissipa as feições, ele reconheceu a boniteza que dela fluía.
           Deu ele um  passo  para o  beijo;  ela  um  passo para  trás.  Disse  ela que há dias o  reconhecera  numa rua, que o seguira, e que tinha  algo a lhe dizer: que se ia casar... Que, não soube ele o quê, mas que o amava, o que ele não ouviu.
          Agora era ele a se ajustar  ao desencanto,  num vagão de segunda clas- se. Na sexta estação, desceria para a vida de refúgio nos campos e na velha casa abandonada. A propósito, esta seria a sua vida, não fosse ela gritar o seu nome, ao corredor do vagão, e correr para o beijo e à vida a dois.
          Eles  amam a velha casa  abandonada.  Sentem-se seus donos.   Limpa- ram-na ao figurino, e ela os abriga como cúmplice do primeiro amor que eles fizeram quando criança.